Forum Português de Música

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Crítica na A2 a Kissin

Ouvi hoje a crítica ao concerto de Kissin com a Orq. Gulbenkian do "espião" da A2, gostei e revi-me no entusiasmo dos comentários.
A integral dos concertos de empreitada, pelo que exige de stamina e capacidade de concentração, é um feito reservado a poucos.
Há não muito tempo, Barenboim tocou em Londres os cinco concertos numa semana e em entrevista disse que só o fez porque os tinha tocado em publico na infância (o que se aprende em pequeno nunca se esquece).
Acho que a classificação atribuida por João Almeida (15 valores) a esta iniciativa épica foi um pouco severa. Já que não pôde desenvolver em directo no programa as razões da nota será que o podia fazer aqui no forum?

Cumprimentos

Pedro Álvares

Re: Crítica na A2 a Kissin

Penso que foi um bom concerto.
Kissin foi praticamente perfeito do ponto de vista técnico. Em dois recitais recordo-me de ter "registado" apenas uma nota "esborrachada" (no final do Concerto nº 4), o que, para o conjunto dos dois recitais, é obra. A digitação, muito nítida, e a dinâmica das cadências, foram também notáveis e até empolgantes (vide o 5º concerto). Nalguns momentos, nomeadamente no final de quase todos os "adagios" (sobretudo no do 4º concerto), o recurso ao pedal, deixando as notas mais agudas "à solta", pairando na sala, criou mesmo momentos sublimes... de cortar a respiração, em comunhão com a música.
Mas, no primeiro concerto, o piano parecia desafinado nalgumas teclas (duas ou três) mais agudas. Isso prejudicou, em meu entender, a interpretação e a escuta: Kissin pareceu-me querer compensar essa desafinação com um esforço para diminuir a pressão sobre essas teclas, de modo a que soassem com menos intensidade... e eu torcia o nariz cada vez que soavam essas "dissonâncias", mesmo que ao de leve.
Mais: em meu entender, a orquestra não teve sempre o mesmo rendimento. No primeiro dia, por exemplo, a orquestra conseguiu ser precisa e esteve bem, no sentido de agarrar as cadências do pianista, preocupada em não se atrasar ou adiantar, mas teve, a meu ver, uma leitura "branca" da obra, isto é estabelecendo fracos contrapontos com o solista. Digamos que, ao contrário do que seria de esperar, sobretudo tratando-se de Beethoven, e mesmo descontando o facto de serem obras da sua juventude, a orquestra não "trovejou". O maestro Lawrence Foster parecia mesmo gesticular mais do que o "som" que obtinha da orquestra. Reconheço que poderá ser uma questão de estilo, ou de opção premeditada. Já ouvi a Orquestra Gulbenkian dar conta de repertório sinfónico com uma extraordinária energia (vide, por exemplo, a 4ª de Brahms, magnificamente interpretada, não há muito tempo), e ao mesmo tempo, escolher uma leitura "modesta", até "apagada", dum concerto (vide Schumann com Radu Lupu) com a nítida preocupação de não se sobrepôr ao solista, postura essa que acaba por resultar num concerto, a meu ver, correcto mas "frouxo". Seja como fôr, tratando-se de um estilo e não de um defeito, ou seja, tratando-se duma opção premeditada do maestro, nesse caso é perfeitamente respeitável. Digamos que é uma leitura mais do que legítima... mas em relação à qual não me identifico. Gosto mais duma orquestra que estimula o solista, que não só o acompanha como até o "provoca", em tensão se necessário, ao jeito de maestros como Colin Davis, Tilson Thomas, Furtwangler, Solti, Wand, e até, noutra área, Gardiner ou Brüggen etc... e como os valores são um reflexo do gosto pessoal (e nada mais, porque, convém recordar, a minha leitura não deve, não pode prevalecer sobre a leitura dum músico) dei 15 valores ao conjunto dos dois recitais.
Devo ainda frisar que, para mim, um concerto que mereça 18 valores ou mais, tem que ser não só superlativo, deixando a média de outros concertos a milhas, como tem ainda que me arrancar da sala e da própria capacidade de análise. Digamos que tem um efeito alienador. Uma boa alienação, claro. Esses são para mim espectáculos absolutamente iniciáticos e capazes de nos mudarem por dentro e para sempre. E mais: tal como nunca "daria" um 0 (zero), também não me atrevo a "dar" um 20. Essa perfeição, para mim, ou não existe ou não estou preparado para a "garantir". Sobra assim uma escala entre 1 e 19 valores. 18 ou 19 valores foram, para mim, por exemplo, o recital de Pollini há uns anos com Chopin e Schoenberg... ou dois recitais de Sokolov (Prokofiev e Bach/Brahms)... ou o recital, há muitos anos, do violoncelista Siegfried Palm na Gulbenkian... ou Andreas Scholl na Igreja do Loreto... ou o Quarteto Festetics (Haydn) no CCB... ou Augustin Dumay em Nantes (3º concerto de Mozart)... ou mesmo Pedro Burmester (sim, um português) também em Nantes com os Prelúdios de Chopin, etc... enfim, é o que resulta da minha bitola estritamente pessoal.
Quanto aos "espiões", devo aqui frisar que aprecio muito a postura deles: vão a cada concerto pelo estrito amor à música e avaliam-no não no prisma de músicos (preparação que eles, de facto, têm) mas de ouvintes comuns. Radiofonicamente são espressivos, transmitem sem equívocos, sem rodeios, e até sem vícios as impressões que recolheram nas salas, e manifestam uma atitude construtiva que, em meu entender, é recomendável à generalidade dos "críticos". É certo que até agora têm sido "generosos" com os concertos da temporada. Mas os concertos, de facto, têm tido um nível bastante elevado, de acordo até com várias críticas entretanto divulgadas na imprensa. As notas até agora oscilaram entre os 15 e os 20 valores, mas, estou seguro, serão mais modestas logo que eles deparem com concertos menos bons, juízo que, também estou certo, eles saberão fazer, dada a sua experiência quotidiana, já com alguns anos, como espectadores nalguns dos palcos de excelência do panorama musical português. Não significa isso que eu, tal como os ouvintes, não possamos questionar, e até criticar, a classificação que eles escolhem (tal como os meus 15 valores "dados" a Kissin também são criticáveis) mas sempre com a intenção de cruzar ideias e sensibilidades e não no sentido de desvalorizar um ponto de vista em favor de outros. Esse é, de resto, o molde, digamos, deontológico dos espiões, no qual eu me revejo, sendo esse um dos motivos pelo qual os respeito e admiro.

Re: Re: Crítica na A2 a Kissin

Obrigado pela mais que generosa explicação

Cumprimentos
Pedro Alvares