Forum Português de Música

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Não nos fica bem subestimar Ruy Coelho

È certo que a ditadura se aproveitou do amor de Ruy Coelho ao seu país, incentivando-o a converter-se num nacionalista, no pior sentido. E isso soube-lhe bem, a ele que, pelos quarenta anos, de idade, começava a perder o vigor progressista (musicalmente falando) que o levara a ser elogiado por espíritos independentes como Manuel de Falla, estagnando-o num provincianismo bem ao jeito de quem lhe pagava, o sabujava e o punha nos píncaros, escondendo o que, de mais valioso, ficara para trás, na sua obra. Finalmente, estava bem instalado, na vida; lutou, conseguiu subir, e soube aguentar-se, ainda que com métodos discutíveis.
Mesmo assim, não consta que a glória o tenha levado a espezinhar os mais fracos, - como vi fazer a outros que viriam a aproveitar a democracia para se acomodar, substituindo logo as dedicatórias comprometedoras de composições de um passado bem próximo. Ruy Coelho nada escondeu, como nunca deixou de cumprimentar respeitosamente a família que lhe abrira as portas de uma casa cheia de conforto, para ele preparar os exames, num magnífico piano, quando, jovem estudante pobre, deve ter sofrido horríveis privações. Vi-o fazê-lo, na década de 1950, sabendo que aquela família caíra na ruína, enquanto ele subia, na vida.
Não há dúvida de que não tratou bem o grande Viana da Mota, fosse por inveja, fosse por mera desconfiança, dada a incompatibilidade de objectivos. O nosso internacionalmente famoso pianista manteve uma independência estóica e lúcida, até na extrema velhice, sem necessitar de cair no nacionalismo piegas que levou Ruy Coelho a ter de musicar, por exemplo, o fenómeno de Fátima. É possível que tudo isto exacerbasse as fraquezas do carácter deste, e o levasse a mostrar uma certa malvadez, que até caía bem a quem lhe dava o pão.
Com qualidades e defeitos, como humano que era, Ruy Coelho não tem, necessariamente de ser o ídolo de todo e qualquer reaccionário. Como melómana, prefiro algumas das suas composições, à obra erudita de contemporâneos que, por serem compreendidos e apreciados apenas por especialistas, eram venerados como génios ... sobretudo por quem nada entendia, da sua música.
Acho mesmo que seria proveitoso ouvir-se todo o Ruy Coelho, na A2.

Re: Não nos fica bem subestimar Ruy Coelho

Sobre este assunto interessante e ainda polémico, escrevi há tempos um artigo, não publicado (apenas por razões circunstanciais, nada de especial, não tirem ilacções!) sobre Ruy Coelho. Como sabem, o meu mestre Lopes-Graça odiava-o e à sua música, mas como penso por mim, investiguei melhor o fenómeno e cheguei a conclusões um pouco diferentes das de Lopes-Graça. É certo que ele o conheceu, mas a distância histórica e afectiva também é boa para a objectividade que se precisa nestes casos. Leiam se tiverem paciência e tirem vocês as vossas conclusões. Estas são apenas as minhas...


«Valerá a pena redescobrir a música de Ruy Coelho?»

Por Sérgio Azevedo*


Farei certamente levantar o sobrolho a muito boa gente se não erguer imediatamente a pena (neste caso, se não erguer as mãos do teclado do computador) e persistir em continuar a escrever este artigo que se propõe, não direi «reabilitar» ou «branquear», mas redescobrir essa figura estranha e sem paralelo na nossa música que dá pelo nome de Ruy Coelho . «Ruim Coelho», diria Fernando Lopes-Graça, e logo nesta definição caricata se coloca o dedo na ferida. Pois se é certo que a nossa música tem andado constantemente ao abandono, muitas vezes sem razões que justifiquem tal desleixo, já a pior música de Ruy Coelho pode perfeitamente suscitar reacções adversas, que o justificam plenamente. E se somarmos à sua pior música a sua característica pessoa, a julgar pelos testemunhos que nos ficaram da sua época, tal desleixo é ainda mais compreensível.
Mas, vamos por ordem.
O primeiro contacto que tive com a música de Ruy Coelho deu-se, teria eu uns 13 anos, ao escutar o único disco que então existia no mercado. O mesmo registo que actualmente existe em CD , apenas acrescentado das duas Sonatas para violino e piano. A impressão que tive das duas peças inclusas no LP, o bailado A Princesa dos Sapatos de Ferro, e a suite orquestral Passeios de Estio, foi, nesses verdes anos, passe o paradoxal pleonasmo, imprecisa, embora ao mesmo tempo, bastante forte.
Eu já conhecia nessa época bastante repertório do século XX, nomeadamente Stravinsky, Prokofiev e Bartók. E foi com esses nomes grandes do século XX que comparei o que ouvi (imprudências da adolescência…). Aquelas obras soavam-me ao universo de Ravel, Debussy, Holst, mas também, insólito num bailado composto já em 1912, ao Stravinsky da Petruska, ao Prokofiev de O Bobo, e ao Holst de Os Planetas, obras que eu conhecia muito bem. Atendendo a que as duas primeiras peças foram compostas, respectivamente, em 1911 e 1915 , a modernidade de uma tal música, composta em Portugal, por um português, parecia-me assombrosa.
A juntar a todas estas impressões, devo dizer ainda que fiquei a saber, através das notas explicativas do LP, que A Princesa dos Sapatos de Ferro era também o primeiro bailado português e que, ao comparar a modernidade e a qualidade destas obras (o bailado e a suite) com as obras da mesma época da autoria de Luís de Freitas Branco, encontrei nestas, para além de uma (bastante) maior consistência de gosto e técnica, pouco que pudesse justificar-lhes um lugar mais elevado no pedestal da modernidade.
Mesmo pegando por essa controversa e subjectiva questão da modernidade, e com a excepção óbvia da célebre 4ª Variação do poema-sinfónico Vathek de Freitas-Branco (composto somente 2 anos mais tarde, em 1914, mas de pouco efeito nos caminhos da nossa música, pois viria a ser tocado apenas uma única vez, e dezenas de anos mais tarde...), estávamos conversados: Luís de Freitas Branco apontava ainda para o universo simbólico de Debussy e para o lirismo de Fauré, enquanto os bailados de Ruy Coelho, acabado de chegar de Berlim (cidade onde, supostamente , chegara a beneficiar de lições de Arnold Schoenberg) «com a pasta cheia de partituras nervosas» , esses apontavam já para a truculência de Stravinsky e para o burlesco de Prokofiev. E tudo isto antes mesmo da vinda a Lisboa dos célebres Ballets Russes de Serge Diaghilev, à tradição modernista dos quais A Princesa dos Sapatos de Ferro parece naturalmente acomodar-se.
Anos mais tarde, tinha eu já 17 anos, e estudava com Fernando Lopes-Graça na Academia de Amadores de Música, cometi o erro de lhe falar com entusiasmo na música de Ruy Coelho, do qual continuava a saber e a conhecer apenas o que o dito LP me soubera informar. Qual não foi a minha surpresa ao presenciar a sua irritada reacção à mera insinuação do nome de Ruy Coelho! Epítetos vários, nem todos muito simpáticos, levaram-me a crer que teria existido alguma polémica violenta entre os dois. Não estava longe da verdade, poucos dias depois chegou-me às mãos um exemplar do célebre opúsculo das edições Cosmos intitulado «A caça aos coelhos e outros escritos polémicos» .
Caros leitores, aconselho a leitura desta obrinha, porque está escrita no mais brilhante e corrosivo, truculento e desopilante estilo Rabelaisiano que se possa imaginar. Lopes-Graça escrevia tão bem como compunha, e passei umas breves e deliciosas horas (breves, porque infelizmente, a polémica não é tão longa como parece ser ao ler com supremo deleite gozoso 200 e tal páginas em letra miudinha de enfiada …) a travar conhecimento com a verdadeira personalidade do maestro Ruy Coelho. E digo verdadeira, porque Lopes-Graça não inventou nada. Na maior parte dos casos, limita-se a transcrever parte dos inenarráveis artigos «musicológicos» ou de «crítica musical» que o dito Coelho escrevinhou em múltiplas páginas de variados jornais nacionais.
Asneira bota asneira, e lá está, página após página, a verve imparável (ia dizer «impagável»…) do compositor sadino, a informar-nos que descobriu a música «autógena», que Wagner era um compositor eclético (esta é das melhores!), ou que o Capriccio de Stravinsky não tinha paralelismos (segundo Lopes-Graça, parece que não tinha tal coisa, e concomitâncias inertes e abissais, além de canja com algálias, muito menos… ).
Ora bem, mesmo lendo o que lia, por vezes mal acreditando no nível baixo da polémica (baixo por parte de Ruy Coelho, entenda-se), ainda me custava a acreditar que o mesmo homem que em 1912 escrevera A Princesa dos Sapatos de Ferro e, já nos anos 40, a delicada suite Passeios de Estio, fosse uma e a mesma pessoa, a qual, ao mesmo tempo que inovava, delirava intelectualmente, revolvendo-se no mais alto grau de baixeza, charlatanismo, oportunismo, ignorância e torpeza. Wagner certamente teria também alguns deste defeitos, mas ignorante a um tal ponto não o era certamente!
Restava a música, e foi por aí que comecei a dar completa razão à fúria de Lopes-Graça. Chegou-me às mãos um outro LP, bastante antigo, que continha uma das cinco Sinfonias Camoneanas tão atacadas no célebre opúsculo músico-cinegético .
Não me lembra já de qual delas se tratava.
A estranheza começou pela capa, de um gosto e requinte basto duvidosos. Ao virar a capa para procurar os intérpretes, pois tenho o hábito de ler o que dizem as contracapas e os folhetos explicativos ainda antes de pôr o disco no leitor, deparo-me com a expressão «Orquestra Sinfónica do Compositor», dirigida pelo compositor (quase que só cá faltava a expressão culinária, «dirigida pelo mesmo»…). Esta expressão tão caricata remeteu-me imediatamente para o universo das anedóticas sessões de ensaios presididas por Ruy Coelho, que Lopes-Graça me havia descrito, e para as verdadeiras anedotas sobre o compositor que entretanto outras pessoas me relataram e confirmaram . Ou seja, orquestras formadas ao Deus-dará, músicos que não podiam estar até ao fim do ensaio poque tinham de ir apanhar o último eléctrico, substituição de violinos por flautas ou de violoncelos por trombones se estes faltavam, enfim!
Pois bem, era efectivamente uma dessas orquestras ad-hoc que o compositor lá conseguia reunir a bem ou a mal para tocar as suas criações, que aparecia neste e noutros discos que mais tarde conheci. É, ao mesmo tempo, estranho que tal acontecesse, pois se Ruy Coelho foi, não sem razão, frequentemente atacado como sendo um protegido do regime salazarista, não se compreende porque não lhe deu este melhores condições para ser tocado e para gravar discos. No mínimo, curioso!
Os formatos dos tipos de imprensa e os títulos das secções da Sinfonia, já eram, em si, bastante explícitos da estética obnóxia que lhes estava subjacente. Um nacionalismo primário, paternalista e salazarista, e aquele contínuo apregoar das Descobertas e de Camões, respectivamente a nossa Jóia da Coroa e o nosso Bardo eternos . Mas mesmo assim, não estava preparado para o que vinha de lá de dentro. Não existem palavras (talvez Fialho…) para descrever o que é essa música e essa execução. Pavorosas tanto uma como a outra. Se os primeiros 30 segundos ainda têm alguma graça, se o início do 2º andamento ainda se come, embora pelos padrões dos epígonos de Puccini ou Massenet, tudo o resto (e olhem que ainda são cerca de 40 minutos de música) é inenarrável, «inenaudível» de tão medíocre. Uma orquestra escolar faria melhor, um compositor de variedades do Parque Mayer, anos 40, idem. Como seria possível que, na mesma época de A Princesa dos Sapatos de Ferro, quase no mesmo ano, o mesmo compositor atingisse extremos tão polares?
É certo que mesmo Mozart, mesmo Bach, mesmo Chostakovitch ou Milhaud, escreveram muitíssimo, e que dentro das respectivas produções, existem obras bastante mais fracas do que outras. Mas nunca chegaram estes a níveis técnicos tão vergonhosos! Villa-Lobos, uma torrente que oscilou entre o melhor e o pior, alguma vez desceu tão baixo. E, ainda que esse o caso, as obras melhores destes génios da música são suficientes em número e grandeza para nos fazerem esquecer os seus pecadilhos pontuais. Não é porém a situação de Ruy Coelho. Sendo ainda o autor de uma produção bastante fornecida, esta é, de longe, mais pequena do que a dos mestres citados, e Ruy Coelho viveu entre 1892 e 1980, embora tivesse deixado praticamente de escrever em 1967. Logo, 57 anos de vida criativa ininterrupta, considerando que 1910 foi o ano em que apresentou em Berlim o seu opus 1, a 1ª Sonata para violino e piano .
Outros pormenores da sua acção musical e da sua palavra escrita me puseram de sobreaviso. Por exemplo, num pequeno folheto editado pelo compositor em 1967, em português , que contém a lista das apresentações das suas obras, ano a ano, deparamo-nos com enormidades musicais indignas de qualquer estudantelho de música. Por exemplo, do Largo, para 2 violas, 2 violoncelos e piano, informa-nos o autor que essa é «a primeira obra dodecafónica de autor português» (sic!). Ora, o Largo foi composto em 1911, ainda o inventor reconhecido do sistema dodecafónico, Arnold Schoenberg (de quem Ruy Coelho se auto-proclamou discípulo) navegava nas águas pantonais dos seus Klavierstücke opus 11, para piano. O sistema dodecafónico só viria a lume na última das suas 5 Peças para piano , opus 23, obra composta entre 1920 e 1923.
Outro belíssimo exemplo da inanidade de Ruy Coelho no referido folheto pode ler-se na mesma página, logo a seguir. Diz-nos o autor que a Sinfonia Camoneana nº1, de 1912, é, não só dodecafónica como ainda politonal…(que mistura de técnicas, valha-nos Deus e o Diabo!) - conclusão tanto mais caricata quando uma delas ainda nem sequer existe, e quanto à outra…- Confesso que, não dispondo já do LP com a Camoneana que já referi, não me lembro agora se era a 1ª ou a 2ª, mas esta 1ª Camoneana, pela lógica, não deverá ser muito diferente das restante obras da época.
Falar, pois, em politonalidade? Stravinsky usou a bitonalidade a partir de 1911, no Petruska, e somente dois anos mais tarde, em 1913, na Sagração da Primavera, é que podemos efectivamente falar de politonalidade . Já agora, no prólogo ao folheto, Ruy Coelho resume este seu discutível e (pelo menos em metade) impossível pioneirismo nalgumas linhas nas quais inclui entre as obras representativas do seu «dodecafonismo, politonalidade e atonalidade», a 1ª Sonata para violino e piano, o que é de bradar aos céus! Inclusa no CD com as suas obras, as duas Sonatas para violino e piano foram acrescentadas ao LP anterior. Desafio o leitor a escutar a 1ª, a tal que é «atonal, dodecafónica e politonal». Embora até relativamente interessante, esta obra segue uma estética romântica, aqui e ali eivada de reminescências de César Franck, de Fauré, do pré-Debussy simbolista. Na truculência moderada do «Scherzo» encontra-se aquela premonição engraçada de Prokofiev que, a meu ver, é o único pioneirismo (muito relativo, mesmo assim) de tal obra…
A bitonalidade, muito moderada, aparece, é certo, nalguns compassos de A Princesa dos Sapatos de Ferro, e a politonalidade é bastante empregue nos Passeios de Estio, mas esta última obra data já dos anos 30...
Empregar os termos dodecafonismo e atonalidade, é simplesmente proclamar uma ignorância do mais alto calibre, impensável num compositor. Terão sido estes, porventura, usados na época (à excepção, pelo menos, do famigerado dodecafonismo!) com o fito de levantar os escândalos e a ambiência de «novidade», a fama «d’enfant térrible», nos quais Ruy Coelho era useiro e vezeiro?
E, é claro, claríssimo, que o termo «dodecafonismo» foi enxertado no opúsculo de 1967, quando já se sabia muito bem o que é que tal termo significava, dando novamente uma aura pioneira e arrojada à «acção e obra de Ruy Coelho». Não pensou o autor na asneira que então botava…
No entanto, não se julgue que tais dislates seriam fruto da inocência, da distracção ou da ingenuidade do compositor. Não senhor! A páginas tantas da polemicada com Lopes-Graça, e quando este pede ao compositor que lhe facilite o acesso às suas partituras para que ele, Lopes-Graça, possa provar o que afirma, Ruy Coelho fecha-se em copas e não responde. Até hoje, pois a família do compositor (falecido em 1980) guarda as partituras a sete chaves, não facilitando em nada o trabalho de investigadores ou simples músicos interessados em repescar qualquer coisa do gigantesco acervo . Não seria difícil a Lopes-Graça ou a outro músico qualquer, descobrir que as afirmações de Ruy Coelho não passam de disparates. Aliás, basta escutar a música para isso se perceber à saciedade, embora a análise sobre a partitura não deixe quaisquer dúvidas aos estudiosos.
Pois bem, perguntar-se-á com certeza o leitor destas linhas, após tantas flechas no alvo, que diacho ainda haverá para redescobrir em Ruy Coelho? Poderá de um tal personagem, de uma tal vergonha nacional, restar ainda algo interessante, algo que valha a pena pesquisar?
Eu penso que sim, e a prova é precisamente o tal CD com o bailado A Princesa dos Sapatos de Ferro e a suite Passeios de Estio. Para além de todas as suas afirmações grosseiras, do seu charlatanismo, do seu «fumo sem fogo», da sua ignorância, da sua torpeza enquanto indivíduo e polemista, da sua «falta de chá» para com o público, dos seus ensaios catastróficos, da sua «manteigada» ao regime salazarista, da sua falta de gosto, oportunismo e nacionalismo fascizante, Ruy Coelho foi, acima de tudo, compositor.
Para mim, agora, é-me indiferente, enquanto ouvinte, se Ruy Coelho foi fascista ou comunista, esperto ou burro, bem-educado ou mal educado, ou se gostava mais de preto do que de branco. Antes de mais, compositor. E falar da sua música, enquanto historiador ou musicólogo, é uma coisa, enquanto músico e ouvinte, é outra. A não ser assim, não tocaríamos hoje as obras de Wagner, Brahms, Stravinsky ou Hugo Wolf. É que, consta, alguns deles não eram mesmo nenhuns modelos de educação, de ideais progressistas, de sociabilidade ou de afabilidade. Bem pelo contrário! E isto para não falar já em Strauss, Orff e Webern, cujas ligações ao nazismo são ainda bastante dúbias …
Todos nós sabemos que Lopes-Graça, talvez o mais feroz atacante de Ruy Coelho (e com razão, como já tiveram oportunidade de ler) foi ele próprio atacado e boicotado por razões políticas durante a vigência do regime de Salazar. São muitos os que pensam hoje que a sua música devia estar acima das politiquices, mas não esteve. Nunca está. E agora, é a de Ruy Coelho que sofre a mesma perseguição, com duas diferenças substanciais: estamos numa pretensa «democracia», e a sua obra não se compara à de Lopes-Graça. No que me toca, por vezes duvido que esta sociedade em que vivemos hoje seja efectivamente uma democracia, com «d» grande, e quanto à qualidade da obra, não duvido da superioríssima qualidade da de Lopes-Graça.
Porém, conseguir provar a falta de interesse total, global, da obra de Ruy Coelho, mesmo que pessoalmente convencido que 90% dela não interessa ou interessa pouco, não é mais do que uma mera questão de fé. Pois o que se conhece de obra tão vasta é ínfimo. E o ínfimo que se conhece, o que está gravado em CD, até não é mau de todo, antes pelo contrário.
Em que ficamos, pois?
Com base em polémicas antigas, em defeitos de carácter, em opiniões políticas, recusamos investigar uma obra inteira? Acanhados por anedotas, por ridículos, recusamos tentar saber se, algures nas montanhas de partituras que Ruy Coelho nos deixou não existirão obras-primas? A julgar pelas obras do CD que temos vindo a referir, acredito que seria interessante a pesquisa, mais não seja para verificar se efectivamente não estaremos a perder boa música em nome sabe-se lá de que pruridos «democráticos», que em nada honram a democracia. Ruy Coelho não era democrata? Talvez não o fosse, mas eu, enquanto democrata, não posso ignorar quem pensou ou pensa de forma diferente da minha. Esta é, no meu entender, a virtude maior da democracia, a capacidade de passarmos por cima das diferenças exteriores para encontrarmos o essencial. E, neste caso, o essencial resume-se a uma expressão: boa música.
Existem ainda outros quesitos que me levaram a escrever este artigo:
É preciso não esquecer que, entre todos os falsos pioneirismos de Ruy Coelho, existem alguns verdadeiramente importantes (novamente a necessidade de nos atascarmos na lama para encontrarmos a pepita, mas que fazer?).
Os bailados, por exemplo, que mesmo depois do exemplo pioneiro de Ruy Coelho, continuaram a ser relativamente raros na nossa música (com a excepção de Frederico de Freitas e Croner de Vasconcelos), ou a sua acção em prol de uma ópera portuguesa e de uma companhia de ópera residente, a favor dos libretos vertidos para português, acção essa que, mesmo defendida de formas e por razões mais do que duvidosas, foi (e continua a ser) um objectivo louvável e um objectivo que ainda hoje continua a ser válido, com pouca melhoria no que toca a resultados palpáveis .
Ruy Coelho começou a sua carreira no período futurista português, ainda mal estudado no respeitante à música e às suas relações com as outras artes, conseguindo mesmo sacudir um pouco o estagnado panorama musical nacional nos primeiros anos da sua carreira. Um Lopes-Graça, um Luís de Freitas Branco ou um Viana da Mota acreditaram nele, viram nele um arauto dos ventos modernistas europeus. Nem tudo foi, pois, em vão. Além de que a nossa música não é assim tão rica para nos permitir desprezar por completo uma obra inteira, sem ao menos tentarmos separar o que se aproveita do que não interessa. Mas Portugal sempre viveu acima das suas posses reais...
Mais tarde, os defeitos já visíveis nas primeiras obras , defeitos que ainda não se sobrepunham às ideias notavelmente frescas e originais de algumas delas, começaram a dominar tudo e todos, e então foi o descalabro total. O nacionalismo eivado de «italianices», superficial, populista, de Ruy Coelho, chocou de frente com a investigação séria e a profundidade do nacionalismo de raíz Bartókiana de Lopes-Graça, praticamente o único compositor (Joly Braga-Santos conseguiu igualmente, embora menos bem, escapar à facilidade do género «rancho folclórico típico») a seguir essa via menos imediata .
Para terminar, eis a lista das 16 obras que penso poderem talvez merecer uma pesquisa ou uma eventual edição e divulgação por parte das entidades responsáveis.

1910 1ª Sonata para violino e piano
1911 Largo (2 violas, 2 violoncelos, piano)
1912 A Princesa dos sapatos de ferro (bailado orquestral)
1916 A História da Carochinha (bailado infantil)
Trio (violino, violoncelo, piano)
1923 2ª Sonata para violino e piano
1924 Belkiss (ópera em 3 actos, premiada num concurso internacional de composição em Madrid)
Kacides Mauresques (data incerta)
1928 Pequena Sinfonia nº1
1930 Feira (bailado com 2 orquestras)
1932 Pequena Sinfonia nº2
Sonatina (piano)
1935 Passeios de Estio (suite orquestral)
1936 Concerto para piano e orquestra nº 1
1942 Quarteto de cordas
1948 Concerto para piano e orquestra nº 2

* Compositor, Professor do Curso de Composição na Escola Superior de Música de Lisboa, membro do CESEM

Re: Re: Não nos fica bem subestimar Ruy Coelho

Meu caro Sérgio Azevedo.
Parabéns pelo artigo, tão bem fundamentado, e pela imparcialidade que nele manifesta. Só por ele, valeu a pena eu ter escrito a primeira mensagem deste bloco.
Nos anos de 1950 e 1960, a Emissora Nacional, Lisboa 2, transmitia muito Ruy Coelho: pelo menos a ópera "Belkiss", lembro-me de ouvir, por mais de uma vez. Isto significa que, se ela não existe, nos arquivos, em discos de 33 ou 78 rpm, deveria existir em fita magnética.
Eu também gostaria de que voltassem a transmitir esta obra sobre a rainha do Sabá, inspirada no poema dramático homónimo, de 1894, (um volume inteiro) de Eugénio de Castro, poeta que, a par de Camilo Pessanha, foi exemplar na época simbolista. Interessa-me observar a interpretação que dele fez o "ruim coelho", nome com que também gracejava Vianna da Motta, com Lopes Graça, nas cartas publicadas nos "Opúsculos" deste último.
Ana Maria

Re: Não nos fica bem subestimar Ruy Coelho

Caro Sérgio,

excelente exposição, na minha muy modesta opinião...

Apenas um pequena correcção; a célebre variação do LFB é a terceira :)

Cumprimentos

Re: Re: Não nos fica bem subestimar Ruy Coelho

Tem toda a razão, claro! é a 3ª...

mea culpa, mea massima culpa (ainda bem que este artigo ainda não foi publicado em revista, detesto gralhas...)


(Já agora, sou eu mesmo, Sérgio Azevedo, mudei apenas de e-mail para o adsl do sapo).

Re: Não nos fica bem subestimar Ruy Coelho

Buááááá!!!! O Sérgio Azevedo detesta-me!

Re: Re: Não nos fica bem subestimar Ruy Coelho

Aqui está uma intervenção idiota que deviaser imediatamente apagada. Não adianta nada ao que fica excelentemente dito antes e é conversa de provocação.
Sabe o que eu acho? O Sérgio de Azevedo uma pessoa suficientemente interessante para se ocupar de si.
Se não tem que fazer divirta-se de outro modo, sr Gralha.
Laura Cotovia

Re: Re: Re: Não nos fica bem subestimar Ruy Coelho

Whoo, whoo!